A CES e as Escolas

A Casa do Educador, no âmbito das suas responsabilidades sociais, deu início à criação de um Centro de Investigação e Atividades com o objetivo de darmos o nosso contributo para uma reflexão sobre o nosso sistema de ensino e ter uma participação ativa na sua melhoria.

Nesse sentido estamos a desenvolver alguns projetos e levar a efeito algumas atividades destinadas, essencialmente, às escolas, aos professores e alunos.

Neste âmbito, a Casa do Educador acabou de publicar o primeiro número de uma revista, cuja periodicidade será semestral, e que, em cada número, para além de outros assuntos que a atualidade justifiquem,  terá um tema base de interesse para as escolas e alunos.

O primeiro número fizemos uma reflexão sobre os exames, tendo por base a pergunta: Afinal o que examinam os exames?

Para que este trabalho fosse possível convidámos várias personalidades do meio académico, científico, cultural e empresarial, que aceitaram colaborar connosco.

Publicamos a seguir o artigo da autoria do Dr. J. J. P. Bianchi, publicado na revista com o título Pequena nota prévia a uma recolha de opiniões sobre os exames.

Pequena nota prévia a uma recolha de opiniões sobre os exames

 J. J. P. Bianchi

 Poucas questões centradas na vida escolar suscitarão opiniões mais extremadas e proclamações mais veementes do que as que fazem dos exames – como forma privilegiada de avaliação do desempenho dos estudantes – um motivo recorrente de acaloradas discussões, entre colegas e amigos, nas famílias, nas escolas, nas comunidades educativas e mesmo no espaço público em geral. Por isso, quando, de forma mais ou menos pública, se procura saber o que alguém pensa dos exames – Concorda, ou não, com a existência de exames (nacionais)? Porquê? Em que níveis de ensino? Em que disciplinas ou áreas de aprendizagem? Em que moldes (periodicidade, âmbito territorial, responsabilidade pela organização, critérios de avaliação, relação com outros procedimentos de avaliação, etc.)? Acha que há alternativas mais satisfatórias? – não será demasiado surpreendente que as respostas às perguntas que se façam sejam, muitas vezes, mais determinadas por aquilo que cada inquirido imagina como “socialmente aceitável” ou como sendo o ponto de vista prevalecente no grupo (ou grupos) que lhe serve de referência, do que por aquilo que cada um verdadeiramente pensa, por si próprio.

Já todos deparámos com impetuosas reclamações e queixumes nostálgicos que condenam e lastimam a alegada vitória da permissividade e do facilitismo, sobre a exigência e o rigor, num desleixado percurso que, dizem, ignora os ideais de auto-superação e de excelência e desemboca na irreparável deterioração da qualidade da educação, nivelando por baixo todos indivíduos, num igualitarismo massificado em que as hierarquias de valores se dissolvem. Em contraponto, não menos frequentes são a denúncia e a condenação da feição supostamente elitista da escola que, por trás da benévola aparência de uma neutra escala de valores tidos como inerentes à própria condição humana, ocultaria a sua tendenciosa eficácia conservadora, perpetuando uma estratificação social iníqua, como um mecanismo de reprodução inexorável das desigualdades económicas e culturais, por força da submissão das formas maioritárias de estar, de sentir, de pensar, de agir e de se relacionar, aos padrões consagrados por hábitos e costumes modelados pelos interesses de minorias dominadoras.

A antitética dicotomia ideológica que acaba de se indiciar prolonga-se e multiplica-se indefinidamente, num antagonismo argumentativo que impugna mutuamente as razões e as intuições alheias e, consequentemente, enclausura, dento de si mesma, cada uma das posições em confronto. De um lado, enumeram-se pressupostas consequências do abandono, ou do afrouxamento, do esforço sistemático de identificação e escrutínio dos resultados das aprendizagens visadas pelas actividades educativas e de ponderação de tais resultados, com base em critérios objectivos e universais, e censura-se o que se declara ser a sua substituição pela apreensão avulsa e meramente impressionista de comportamentos e atitudes cuja apreciação se subordina à subjectividade dos avaliadores e varia em função da exagerada importância atribuída a particularismos locais e a características singulares (pessoais, familiares, culturais, económicas, sociais...) dos avaliandos. Do lado oposto, listam-se os malefícios, reais ou imaginários, da concentração da atenção nos aspectos do comportamento e dos resultados dos alunos que se consideram susceptíveis de descrição normalizada, da redução da complexidade e diversidade de cada sujeito e de cada realidade concreta aos esquemas sobre simplificados de abstracções estereotipadas, da ignorância deliberada das condições em que as capacidades e as limitações individuais se manifestam, da prevalência do significado estatístico dos desempenhos, como simples pontos num quadro de referência tão abrangente e impessoal quanto possível, em detrimento do seu significado enquanto marcos em percurso, singulares e únicos, de desenvolvimento pessoal, da submissão a valores que forçosamente veicularão as preferências de determinados grupos e imporão a subalternização das de outros.

De um lado e do outro, ideias e sentimentos, diferentes e mutuamente excludentes, do ser – do que realmente é, do que acontece, do que determina a realidade – e do dever – do que é desejável, do que se quer que aconteça, do que vale a pena preservar e promover e do que importa evitar ou combater. Por vezes internamente fracturadas por contradições, de um lado e de outro, concepções incompatíveis do que é justo, sequências simetricamente ordenadas do que é mais ou menos valioso, do que é mais ou menos importante, do que é essencial e primário ou acessório e secundário.

Os exames poderão ser apreciados de modo mais sereno e objectivo, mais metódico e organizado, teórica e empiricamente mais sólido e mais cuidadoso? Numa palavra, será possível discutir os prós e os contras dos exames de forma mais desprendida de preferências e rejeições liminarmente vinculadas a opiniões de alcance genérico (políticas, ideológicas ou outras) e, como tal, potencialmente mais útil e esclarecedora?

Acreditando que sim, convém que estejamos prevenidos e nos mantenhamos atentos à considerável complexidade da tarefa, tornada patente pelo numeroso conjunto de dicotomias que a marginam: 1. “avaliação criterial” versus “avaliação normativa”; 2. “avaliação formativa” versus “avaliação classificatória”; 3. “avaliação de processos” versus “avaliação de resultados”; 4. “autoavaliação” versus “heteroavaliação”; 5.“avaliação participante” versus “avaliação distanciada”; 6. “avaliação contínua” versus “avaliação sumativa”; 7. “avaliação qualitativa” versus “avaliação quantitativa”; 8. “avaliação global” versus “avaliação de conhecimentos”; 9. “avaliação interna” versus “avaliação externa”; 10. “avaliação do progresso” versus “avaliação da proficiência”. Sendo manifestamente impossível rastrear em poucas palavras as múltiplas direcções em que a discussão de tantas tensões mutuamente antagónicas necessariamente se desdobra, encerraremos este texto esboçando uma grelha mínima para ajuizar sobre as vantagens e os inconvenientes dos exames, através de um conjunto, meramente exemplificativo, de perguntas determinadas por atitudes tendencialmente opostas:

– O que é mais justo coincide com o que tem efeitos práticos mais relevantes e valiosos? O esforço, o empenhamento, a dedicação, o desenvolvimento de novas capacidades e os progressos face ao ponto de partida devem ter mais, ou menos, peso do que os sucessos fundamentalmente resultantes de capacidades e condições pré-existentes? O que deve considerar-se preponderante, o percurso ou o ponto de chegada?

– Qual dever ser o propósito principal da avaliação? Deve ser mais retrospectivo, centrando-se no que foi feito, na(s) capacidade(s) demonstrada(s), ou mais prospectivo, procurando antecipar o que poderá vir a ser feito, orientando-se para o desenvolvimento futuro das capacidades?

– Todos devem ser avaliados do mesmo modo e com os mesmos critérios, ou a avaliação deve ajustar-se às características que individualizam cada avaliando e às circunstâncias que condicionam os seus desempenhos?

– Sendo a educação um processo que visa intencionalmente o aperfeiçoamento pessoal, a avaliação educativa não deverá cingir-se à apreciação individualizada do percurso de cada educando, confrontando os seus desempenhos com critérios absolutos que permitam graduar os sucessos e os insucessos na consecução de objectivos fixados caso a caso? A avaliação educativa, não deverá ser sempre “avaliação criterial”? Ou, pelo contrário, para seleccionar objectivos devidamente ajustados às possibilidades de progresso de cada educando, não será necessário comparar os seus desempenhos com os de outros, à luz de um quadro de referência suficientemente amplo para estimar em que medida é mais ou menos provável que um determinado nível de desempenho seja alcançado com sucesso? A determinação de critérios de sucesso ou insucesso poderá dispensar as comparações no seio de grupos razoavelmente numerosos? Tais critérios não deverão ter em conta normas estatísticas fixadas em função da probabilidade de alcançar diferentes níveis de desempenho? Quer dizer, a avaliação educativa poderá deixar de ser “avaliação normativa”?

– Se, de um certo ângulo, é verdade que o ensino e o estudo devem ambicionar resultados mais amplos e duradouros do que o sucesso pontual num exame, sob uma outra perspectiva, não será também verdade que os exames não impedem que o ensino e o estudo acalentem tal ambição? Que quem ensina (e quem estuda) bem e eficazmente, ensina (e estuda) “para a vida e para o exame”? E que quem não ensina (ou estuda), ou ensina (ou estuda) mal, não prepara (nem se prepara), nem para o exame, nem para a vida?

– Se, de um certo ângulo, é verdade que a “avaliação interna”, realizada pelo(s) professor(es) que organiza(m) e orienta(m) directamente o(s) processo(s) de ensino e de aprendizagem, é potencialmente mais variada, mais detalhada e mais frequente, e, portanto, pode ser mais pertinente e representativa (por poder relacionar-se mais efectivamente com as aprendizagens realmente promovidas), e mais consistente e fiável e com maior eficácia preditiva do que a “avaliação externa” (concebida e organizada por agentes exteriores a cada escola), não será igualmente verdade, sob uma perspectiva complementar, que a relevância da avaliação externa pode ser maior, por permitir perceber o significado relativo de cada nível de desempenho de forma mais densa e mais nítida, graças à sua inserção num quadro de referência muito mais vasto e diversificado, e que a a sua validade pode beneficiar do acréscimo de objectividade facultado pela neutralidade e imparcialidade que são favorecidas pela separação dos papéis de responsáveis pela avaliação e de responsáveis por aquilo que se avalia?

– Se, de um certo ângulo, é verdade que a monitorização das actividades educativas, com vista a maximizar a sua a eficiência, requer que, a cada momento, se procure perceber se os efeitos dos passos que vão sendo dados corroboram a oportunidade dos objectivos seleccionados, ou se, inversamente, recomendam a sua reformulação, e se a direcção em que se caminha e o ritmo com que se avança satisfazem a expectativa de que os resultados desejados serão obtidos, o que justifica a prossecução continuada de diligências de identificação, descrição e classificação qualitativa de resultados parciais ou intermédios, no âmbito do que se tornou habitual chamar “avaliação formativa”, que, frequentemente, inclui actividades de auto-avaliação e hetero-avaliação cooperativa, realizadas por alunos e professores, não será igualmente verdade, sob uma perspectiva complementar, que os alunos e as respectivas famílias, para poderem escolher acertadamente para onde se devem encaminhar, em ordem a optimizar a compatibilidade entre as suas aspirações e as suas possibilidades, carecem de indicações credíveis, sintéticas, precisas e comparáveis, como as que, sob a forma de classificações quantitativas ou ordinais, expressas por rótulos numéricos ou menções qualitativas escalonadas, intentam localizá-los, nos grupos em que se inserem e, idealmente, na população em geral, em função, da valia comparativa dos seus

desempenhos? E não será verdade que essas “notas”, produzidas pela avaliação correntemente conhecida como sumativa, normativa e classificatória, apesar de serem muito grosseiras e lacunares, são, as mais das vezes, o mais firme, se não a único, dos pontos de apoio para as estimativas não inteiramente subjectivas das probabilidades de sucesso ou de fracasso, nas diversas áreas em que poderão prosseguir os respectivos percursos formativos?

– Se, de um certo ângulo, é verdade que os conhecimentos, as capacidades cognitivas e as destrezas práticas que podem apreciar-se satisfatoriamente através de apenas uma (ou muito poucas mais) actividade padronizada de avaliação sumativa externa (um exame), estão muito longe de esgotar as finalidades que justificam a educação escolar, não será também verdade, sob uma perspectiva complementar, que, se não forem adequadamente suportadas por elementos relevantes e tendencialmente objectivos, como os que se pretende obter com os exames, as decisões relativas ao acesso a um nível ou modalidade de escolaridade e ao progresso no seu seio, ou respeitantes à certificação de competências e qualificações que se espera que sejam promovidas ou garantidas pela(s) escola(s), propenderão a tornar-se predominantemente dependentes de circunstâncias fortuitas e de escolhas arbitrárias?

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